Papus: do médico ao mago
Ao longo de sua jornada, Papus dedicou-se à constante luta contra o materialismo científico racional que predominava na França no final do século XIX, defendendo a doutrina espiritualista como uma alternativa ao positivismo.
Para se examinar com mais clareza a concepção filosófica de Papus sobre as ciências ocultas, vejamos a seguir o artigo “Como me tornei um místico”, publicado na revista L’Initiation, em dezembro de 1895. Esse documento é importante para se compreender a visão do autor sobre a espiritualidade, numa sociedade que se voltava para a secularização.
A partir de suas próprias palavras, o texto dá voz à trajetória do médico Gérard Anaclet Vincent Encausse ao místico Papus. O leitor terá a oportunidade de percorrer o caminho trilhado por Papus para ir do materialismo ao misticismo
Como me tornei um místico
Notas da autobiografia intelectual
Para Camille Flammarion
Muitos escritores independentes, alguns filósofos e alguns cronistas, frequentemente se perguntam como é possível os jovens educados nos princípios da “razão” e protegidos da “superstição” de repente abandonar esses ensinamentos positivistas para embarcar em estudos místicos, e se interessar por questões religiosas e filosóficas mais do que por evoluções políticas, levando a extravagância ao ponto de pesquisar sobre ciências ocultas e magia, o que denota, se não uma aberração total, pelo menos um certo enfraquecimento das faculdades intelectuais?
Esse movimento da juventude contemporânea em direção ao misticismo preocupa os homens maduros e frustra suas esperanças. Queremos permitir que um antigo adepto das doutrinas materialistas, um médico educado nos princípios caros ao positivismo, relate algumas características de seu desenvolvimento intelectual e mostre pelo menos um caso desse estranho torpor místico, seguido desde o seu início até a crise aguda? Se os filósofos não estão interessados nesta observação, talvez ela beneficie os alienistas; uma vez que é comum em certo meio considerar todos os espiritualistas como degenerados, se não loucos.
Esta é a primeira vez que abordo minha autobiografia intelectual e farei tudo para ser o mais conciso possível. Portanto, primeiro advirto os colegas que podem ser chamados a seguir minhas observações de que nunca estive em contato com professores religiosos; pelo contrário, todos os meus estudos da escola primária ao doutorado médico, passando pelo certificado da escola primária, pelo certificado de gramática e pelo bacharelado, foram realizados em escolas seculares ou no colégio Rollin. Portanto, não há necessidade de buscar aqui a predisposição doentia derivada dos ensinamentos da infância.
Em 1882, comecei meus estudos médicos e encontrei todas as cadeiras importantes da Escola de Paris, dadas por materialistas, ensinando as doutrinas que eles estimavam sob o pretexto do evolucionismo.
Assim, tornei-me um ardente “evolucionista”, compartilhando e propagando a fé materialista da melhor maneira possível.
Pois existe uma fé materialista que considero necessária para qualquer cérebro que queira evoluir em algum momento. Materialismo, que ensina a trabalhar pela comunidade sem nenhuma esperança de recompensa, já que somente a memória de sua personalidade pode permanecer depois de você, esta doutrina, que endurece o coração e ensina a saudar somente osfortes na luta pela vida, tem, no entanto, uma poderosa ação sobre a razão, e isso redime um pouco seus erros e perigos. Sabemos que vantagem o materialismo tem tirado da doutrina da evolução. E, no entanto, foi o estudo minucioso da evolução que me mostrou a fraqueza do materialismo e seus erros de interpretação.
Disseram-me: “Esses sais minerais, esta terra, lentamente quebrados e assimilados pela raiz da planta, irão evoluir e se tornar células vegetais.
Essa planta, por sua vez, transformada pelas secreções e fermentos no estômago do animal, se tornará fluídos e se transformará nas células desse animal”. Mas a reflexão logo me fez perceber que estávamos esquecendo um dos fatores importantes do problema a ser resolvido.
Sim, o mineral evolui e seus princípios essenciais tornam-se os elementos materiais da célula vegetal. Mas com uma condição: é que as forças físico-químicas e o próprio Sol venham a ajudar nesse fenômeno, isto é, com a condição de que as forças superiores por sua evolução se sacrifiquem à evolução das forças inferiores.
Sim, a planta digerida realmente se torna a base material de uma célula animal, mas com a condição de que o sangue e a força nervosa (ou seja, as forças superiores na escala de evolução) venham a se sacrificar. Pela evolução da célula vegetal e por sua transformação em fluídos.
Em resumo, qualquer ascensão na série, qualquer evolução exigia o sacrifício de uma e mais frequentemente de duas forças superiores. A doutrina da evolução é incompleta. Ela representa apenas um lado do fato e negligencia o outro. Ela traz à luz a lei da luta pela vida, mas esquece a lei do sacrifício que domina todos os fenômenos.
Possuído por essa ideia que acabara de descobrir e que me era muito cara, resolvi investigar minha descoberta da melhor maneira possível, e passei meus dias na Biblioteca Nacional. Fui estagiário no hospital; um ano de trabalho, dois no máximo, teria me permitido ser estagiário e realizar uma carreira médica talvez frutífera. Eu dediquei aqueles anos que meus colegas haviam passado estudando os trabalhos dos examinadores ao estudo dos trabalhos dos alquimistas, dos velhos grimórios mágicos e dos elementos da língua hebraica, e a partir daquele momento meu futuro tomou forma. A descoberta que eu pensava ter feito, encontrei novamente nas obras de Louis Lucas, depois nos textos herméticos, depois nas tradições indianas e na cabala hebraica. Apenas a linguagem era diferente e, onde escrevemos HCl, os alquimistas desenharam um leão verde; e onde escrevemos 2HCl + Fe = FeCL2 + H2, os alquimistas desenharam um guerreiro (Marte, o elemento ferro) devorado pelo leão verde (ácido).
Em poucos meses, esses famosos grimórios eram tão fáceis de ler quanto as obras muito mais obscuras de nossos pedantes químicos contemporâneos. E, além disso, aprendi a usar esse maravilhoso método analógico, tão pouco conhecido dos filósofos modernos, que permite a todas as ciências se ligar em uma síntese comum, mostrando que os antigos foram pura e simplesmente caluniados, do ponto de vista científico, pelo desconhecimento histórico indescritível dos professores de ciências de nossos dias.
Foi estudando os livros herméticos que tive as primeiras revelações sobre a existência de um princípio em ação no ser humano, e que tão facilmente explica todos os fatos hipnóticos e espiritualistas.
Aprendi na faculdade de medicina que todas as doenças são danos às células, e que nenhuma função pode ser realizada sem o trabalho das células. Todos os fenômenos psíquicos, todos os fatos da vontade e ideação, todos os fatos da memória correspondiam ao trabalho de certas células nervosas, e a moralidade, as ideias de Deus e do Bem eram o resultado mecânico produzido pelos efeitos da hereditariedade ou do ambiente sobre a evolução das células nervosas. Quanto aos filósofos e “teólogos” ditos “espiritualistas”, deviam ser considerados ou como ignorantes, que não conheciam anatomia nem filosofia, ou como loucos mais ou menos enfermos conforme o caso. Um livro de psicologia não teria valor se não fosse feito por um médico e que pertencesse à escola das pessoas “educadas” e razoáveis, ou seja, à escola materialista oficial. E para as pessoas ingênuas que ainda acreditavam na alma, foi dito: “A alma nunca foi encontrada debaixo de seu bisturi”. Isso, em poucas palavras, é o resumo das opiniões filosóficas que nos foram ensinadas.
Sempre tive o perigoso hábito de aceitar uma ideia somente depois de eu mesmo tê-la estudado de todos os ângulos. A princípio, encantado com o ensino da Escola, gradualmente fui tendo algumas dúvidas que peço permissão para expor.
A Escola ensinava que nada se realiza sem a ação dos órgãos, tanto mais numerosos quanto mais se estabelece a divisão do trabalho no organismo.
No entanto, durante o incêndio no Hôtel-Dieu, tínhamos visto paralíticos, cujas pernas estavam atrofiadas e cujos nervos já não existiam como órgãos, de repente recuperarem o uso de seus membros, até então sem utilidade. Mas isso ainda era apenas um argumento fraco.
Os experimentos de Flourens[1] mostraram que nossas células se renovam em um tempo que, para os humanos, não passa de três anos. Quando vejo um amigo novamente, três anos depois de uma visita anterior, esse amigo não possui mais nenhuma das células materiais que existiam antes. E, no entanto, as formas do corpo são preservadas, a semelhança me permite distinguir que meu amigo ainda existe. Então, qual órgão presidiu a essa conservação das formas, quando nenhum órgão do corpo escapou a essa lei? Esse argumento é um dos que sempre me surpreendeu mais. Mas eu tinha de ir ainda mais longe.
Claude Bernard,[2] ao estudar a relação da atividade cerebral com a produção da ideia, foi levado a notar que o nascimento de cada ideia causava a morte de uma ou mais células nervosas, de modo que essas famosas células nervosas, que foram e ainda são o baluarte da argumentação dos materialistas, retoma, segundo essa pesquisa, o seu papel real, o de instrumento, e não o de agente produtor.
A célula nervosa foi o meio de manifestação da ideia e não gerou a ideia em si. Uma nova descoberta apoiou ainda mais a validade desse argumento.
Todas as células do ser humano são substituídas em um certo tempo. Agora, quando me lembro de um fato que aconteceu há dez anos, a célula nervosa que na época registrou esse fato foi substituída cem ou mil vezes. Como a memória do fato foi preservada intacta ao longo dessa hecatombe de células? O que acontece com a teoria da célula generativa?
E mesmo esses elementos nervosos, que desempenham um papel tão importante na realização do movimento, são essenciais para esse movimento quando a embriologia nos ensina que o grupo de células embrionárias que mais tarde constitui o coração, bate ritmicamente enquanto os elementos nervosos do coração ainda não estão constituídos.
Esses poucos exemplos, escolhidos ao acaso entre uma série de fatos, levaram-me a observar que aqui novamente o materialismo levou seus seguidores no caminho errado ao confundir o instrumento inerte com o agente de ação eficaz.
À comprovação de que o centro nervoso constitui a ideia, o materialismo nos diz: qualquer dano ao centro nervoso repercute nos fatos ideativos e, se houver qualquer dano em sua terceira convolução frontal esquerda, você se tornará afásico, e afásico de um tipo particular, dependendo do grupo de células nervosas afetadas pela lesão.
Esse raciocínio é simplesmente absurdo e, para demonstrá-lo, vamos aplicar o mesmo raciocínio a um exemplo: o telégrafo.
A prova de que a máquina telegráfica faz o envio da mensagem é que qualquer dano ao dispositivo telegráfico afeta a transmissão, e, se eu cortar o fio do telégrafo, a mensagem não pode passar.
Este é exatamente o valor do raciocínio materialista: eles se esquecem do telégrafo ou querem ignorar a sua existência.
O cérebro está para o princípio espiritual que existe dentro de nós exatamente como o dispositivo transmissor está para o telégrafo. A comparação é antiga, mas ainda é excelente.
O materialista chega até nós e diz: “Suponha que o telegrafista não exista e raciocinemos como se ele não existisse”. Em seguida, ele faz uma afirmação dogmática: “O dispositivo transmissor funciona por si mesmo e produz o envio da mensagem após uma série de movimentos mecânicos provocados pelos reflexos”. Feito isso, o resto funciona por conta própria, e o materialista felizmente conclui que a alma não existe e que o cérebro produz ideias por conta própria, como a máquina de telégrafo produz o envio da mensagem. E esse raciocínio não deve ser refutado; é um dogma positivista defendido tão fanaticamente quanto um dogma religioso.
Sei o quanto me custa ter descoberto a incoerência do raciocínio: fui acusado de astúcia, porque se supunha que um materialista que se tornasse místico só poderia ser uma pessoa “astuta” ou maluca. Agradeço aos nossos adversários por escolherem novamente o primeiro termo. Mas vamos em frente.
Assim como podemos ver que as células materiais do corpo são apenas ferramentas de algo que preserva as formas do corpo através do desaparecimento dessas células, também podemos ver que os centros nervosos são apenas ferramentas de algo que usa esses centros como instrumentos de ação ou de recepção.
E o anatomista, armado com seu bisturi, não descobrirá mais a alma ao dissecar um cadáver do que o trabalhador, armado com seu alicate, descobrirá o telegrafista ao desmontar a máquina de telégrafo, ou o pianista ao desmontar o piano. É desnecessário, penso eu, demonstrar ainda mais a incoerência do raciocínio com que os chamados filósofos positivistas sempre se opõem a seus adversários.
Antes de encerrar estas linhas, ainda quero chamar a atenção para dois “truques” de raciocínio usados pelos materialistas nas discussões, e dos quais se servem generosamente quando se sentem inferiores aos seus oponentes.
O primeiro truque é a “referência a ciências especiais e memórias obscuras”, consideradas desconhecidas pelo adversário ingênuo.
Como você se atreve a falar das funções cerebrais se ignora a cristalografia?
Você ousa lidar com essas questões e não leu a última dissertação de Tartempion[3] sobre as funções cerebrais do homem terciário e do peixe-dourado? Vá para a escola e só volte para discutir comigo quando “conhecer” os elementos da questão que você está abordando. Agora, aqueles que nos apoiam com esse disparate são geralmente estudantes brilhantes da faculdade de medicina, que só conhecem psicologia e filosofia de nome... e olhe lá!
O segundo “truque” consiste em nos esmagar sob o ridículo, pois temos a audácia de ter uma “opinião” contrária à do sr. X., que tem mais títulos que nós. Como pode você, um mero médico, contestar a opinião do sr. X., o professor adjunto, ou do sr. Z., o brilhante professor?!
Torne-se primeiro o que eles são, e então veremos.
Todas essas são saídas falsas, e tão comuns que foram usadas recentemente por Brunetière,[4] que ousou falar em ciência quando nem sequer é médico... Um horror! E, quando se é médico, deve-se ser professor adjunto, e, quando se é professor, deve-se ser membro do Instituto, e, quando finalmente um membro da Academia de Ciências ousa afirmar sua fé em Deus e na imortalidade da alma, como fez Pasteur, diz-se que ele era velho e que o abrandamento explica tais doutrinas. Essas são as evasões usuais dos materialistas, mas basta conhecê-las para trazê-las de volta ao seu devido lugar.
Portanto, nem sempre é justo dizer que a fé é uma graça especial concedida a algumas naturezas. Estou convencido, pelo que chamarei de meu desenvolvimento pessoal, de que a fé se adquire pelo estudo, como tudo mais.
No entanto, o conhecimento materialista é de grande importância. Ele permite abordar a psicologia e os problemas da alma com base na fisiologia e, assim, proporciona relevância à doutrina dos três princípios do homem e do que se denomina, na história da filosofia, a teoria do mediador plástico.
Essa teoria admite que entre o corpo físico e a anatomia, o espírito imortal e a psicologia, existe um princípio intermediário responsável por assegurar as relações entre os dois extremos, e que se enquadra no domínio da fisiologia.
Esse princípio, conhecido hoje como vida orgânica, que atua exclusivamente sobre os órgãos de fibras lisas através do grande nervo simpático, tem uma existência definitiva, na minha opinião, e não é uma questão de dedução metafísica.
Os antigos hermetistas chamavam esse princípio de corpo formador, ou corpo astral, e foi a ele que atribuíram essa preservação e manutenção das formas do organismo. Agora posso dizer que o estudo desse corpo astral, que venho buscando há quase dez anos, me permitiu estabelecer uma explicação muito científica desses estranhos fenômenos hipnóticos e espíritas que tanto desconcertam certos professores da Faculdade de Paris no momento. Além disso, um exame sério de todas as teorias apresentadas para explicar esses fatos me permite afirmar que a teoria do hermetismo sobre a constituição do homem, uma teoria que não varia desde a décima oitava dinastia egípcia, ou seja, há trinta e seis séculos, é a única que dá um relato lógico e satisfatório de todos os fatos observados. O estudo do problema da morte e do problema da sobrevivência da personalidade além da sepultura também pode ser abordado, e esse estudo deve ter algum interesse, uma vez que muitos “jovens” contemporâneos pertencentes à classe intelectual preferem essa pesquisa às complicações da política e das lutas partidárias.
Talvez, em outra oportunidade, eu fale sobre meu modo esotérico. Por ora, queria apenas mostrar o caminho percorrido exotericamente, desde minhas convicções materialistas até meus estudos místicos atuais.
Papus
[Nota: este artigo foi traduzido do francês por Lilian Dionysia e incluído no posfácio da obra A ciência dos magos, de Papus, publicada pela Ajna Editora em 2022.]
[1] Jean-Pierre Flourens (1794-1867), fisiologista francês, foi o primeiro a demonstrar experimentalmente as funções gerais das principais porções do cérebro dos vertebrados e um dos pioneiros na anestesia. Fonte: Enciclopédia Britânica. (N. E.)
[2] Claude Bernard (1813-1878), médico e fisiologista francês a quem devemos os fundamentos da fisiologia moderna. Fonte: Enciclopédia Britânica. (N. E.)
[3] Nome próprio fictício usado para qualquer pessoa. Fonte: Dictionnaire Le Robert (N. E.)
[4] Ferdinand Brunetière (1849-1906) foi um importante escritor e crítico literário francês. Brunetière era sobretudo um classicista racionalista e se opôs diversas vezes às correntes literárias de seu tempo e ao cientificismo dominante na época. Defendeu uma teoria da evolução de gêneros literários, inspirada nas teorias de Darwin. Fonte: Biblioteca Digital Unesp (N. E.)
[*] Artigo publicado na revista L’Initiation em dezembro de 1895. Disponível (em francês) em: <https://cercle-papus.com/portraits/comment-je-devins-mystique-par-papus/> (N. E.)