LUZ SOBRE O CAMINHO comentado por Charles Johnston

LUZ SOBRE O CAMINHO comentado por Charles Johnston[1]

“A Alma do homem é imortal e o seu futuro é algo cujo crescimento e esplendor não têm limite.”[2]

É com extrema modéstia que ouso empreender um breve comentário ou análise do livro cujo título encabeça este artigo; não apenas pela natureza da própria obra, mas também porque ela já foi comentada duas vezes: uma pela autora e outra por um estudante muito erudito de literatura oriental.[3] As notas da autora, no entanto, foram mais uma extensão do texto original do que um comentário no sentido estrito da palavra; enquanto o objetivo do segundo comentarista foi mais uma tentativa de mostrar a identidade das doutrinas contidas em Luz sobre o Caminho com as da antiga filosofia bramânica, do que explorar a natureza dessas doutrinas em si mesmas.

O objetivo deste artigo, ao contrário, é tentar analisar o esquema filosófico de acordo com o qual este pequeno livro foi escrito; em outras palavras, buscar expor o equivalente intelectual das doutrinas espirituais de Luz sobre o Caminho.[4] É inevitável que, ao transformar a doutrina do plano espiritual para o plano intelectual, por assim dizer, o equivalente intelectual seja inferior ao original espiritual. Para contrabalançar essa perda, por outro lado, é verdade que o equivalente intelectual pode tornar o original espiritual acessível a alguns, cujo modo de pensar os impede de apreciá-lo diretamente. É na esperança de que isso ocorra que este texto foi escrito.

Para começar, a obra que estamos considerando indica uma possível iluminação da Alma e o desenvolvimento da parte superior da nossa natureza; e afirma ainda que esses resultados não podem ocorrer antes que uma certa batalha seja travada e vencida. Temos, portanto, de descobrir o que é a alma, qual é a natureza da batalha, quais são as forças opostas e quais são os resultados da luta.

Os combatentes são a natureza superior, ou Alma, de um lado; e a natureza inferior, ou egoísmo, do outro. A natureza superior inclui os poderes intelectuais, espirituais e estéticos: ou seja, os poderes que lidam com a percepção da verdade, bondade e beleza.

O senso de verdade manifesta-se caracteristicamente na conquista de algum intrincado problema matemático, ou ao seguir com sucesso uma cadeia difícil de raciocínio.

O senso de beleza se manifesta na alegria com que contemplamos o esplendor de um glorioso pôr do sol.

O senso de bondade se manifesta na voz de uma consciência que aprova ou na reverência e admiração que sentimos por algum caráter divino e nobre.

É inegável que o intelecto pode discriminar o que é ou não é verdadeiro dentro de seu próprio domínio; a faculdade estética também pode pronunciar-se com certeza sobre a presença ou a ausência da qualidade que chamamos de beleza.

Do mesmo modo, a natureza moral decide sem hesitação o que está ou não em conformidade com a Retidão. Essas três faculdades da natureza superior são suscetíveis de desenvolvimento, ou seja, em diferentes períodos, perceberão as qualidades de beleza, verdade e bondade em diferentes objetos e em diferentes graus; mas, quanto à realidade das três qualidades, sua voz é sempre a mesma.

As três faculdades percebem três harmonias, cada uma em seu próprio domínio; quando as três são desenvolvidas de forma harmoniosa, percebe-se que as três harmonias são uma só, e a essa grande harmonia única são dados os nomes de o Eterno e a Lei de Deus. O sábio da antiguidade, sentindo o senso de Retidão dentro de si, exclamou: “Eu me alegrarei no Eterno, e nele colocarei minha confiança”. Quando as faculdades da natureza superior são desenvolvidas, sob toda desarmonia temporária e perturbação caótica, percebe-se uma ordem mais profunda e uma harmonia mais duradoura sempre em ação. Marco Aurélio teve a percepção de uma profunda verdade espiritual quando escreveu as frases finais da seguinte declaração:

“É preciso também observar com cuidado que tudo o que decorre segundo a natureza tem algo de gracioso e atraente. No pão, por exemplo, quando é assado, formam-se algumas fendas que se abrem. Ainda que, de certo modo, isso pareça contrário ao ofício do padeiro, acaba por agradar e desperta o desejo de comer. O mesmo acontece com os figos, que se rompem quando estão já bem maduros. E as azeitonas quando amadurecidas, o fato de estarem prestes a apodrecer confere uma beleza particular ao fruto. Também as espigas de milho que se dobram para baixo, as sobrancelhas do leão, a espuma vertida da boca do javali e muitas outras coisas. Se observadas isoladamente, estão longe de ser belas, mas, no entanto, por serem uma decorrência da obra da natureza, adquirem um encanto e nos cativam. Da mesma maneira, se alguém tem sensibilidade e entendimento profundo dos acontecimentos do universo, grande parte do que ocorre como consequência lhe parecerá harmonioso e agradável”. Isso significa que, em todas as coisas, se pudéssemos percebê-lo, está a harmonia do Eterno.

A primeira harmonia, a harmonia da verdade, é percebida pelo materialista científico; ou seja, ele é capaz de perceber o reinado da Lei no universo físico.

A natureza artística pode perceber a harmonia da beleza na natureza e na arte.

Os espiritualmente inclinados percebem a harmonia moral.

É uma característica distintiva da civilização moderna que as harmonias da verdade e da beleza, da ciência e da arte, sejam percebidas e reconhecidas abertamente por todos, enquanto a harmonia da Santidade é ignorada, deixada em silêncio e esquecimento. O objetivo da teosofia, corretamente compreendida, é despertar o mundo para um renovado senso da harmonia da Retidão.

Isso é o que acontece com a natureza superior. Confrontando-a está o Egoísmo. Pois onde o senso moral dita paz e boa vontade a todos os seres humanos, o Egoísmo levanta uma reivindicação egoísta por um monopólio de todas as coisas boas, todos os prazeres, todas as satisfações. O primeiro prazer que o Egoísmo exige é superar e dominar todos os outros egoísmos que percebe buscando os mesmos prazeres que ele. Daí o comando: “Extermine a ambição”. Tendo uma vez alcançado essa dominação, o “eu” clama por satisfações tanto sensuais quanto sensíveis, por todos os prazeres da vida. Daí a necessidade do comando “Extermine o desejo de viver”. O “eu” também é desviado pela indolência de realizar quaisquer boas inspirações que possam vir da natureza superior através da névoa espessa que o cerca: contra a indolência está escrito “Extermine o desejo de conforto”.

Mas o senso moral condena a existência desse eu, desse centro de força, que não está de acordo com sua percepção de Harmonia. Quando a natureza moral percebe o mal do egoísmo, surge inevitavelmente a pergunta para solução: “Essa causa de desarmonia deve cessar ou continuar?” Se a decisão for pela sua continuidade, uma das duas coisas acontecerá. Ou, antes que a natureza moral tenha sido completamente paralisada e atrofiada pela negligência, — antes que a consciência ferida seja completamente silenciada, — o fato será reconhecido, em meio a dor e tristeza indescritíveis, que “trabalhar para si é trabalhar para a desilusão”; e, nesse caso, a natureza moral pode finalmente encontrar seu desenvolvimento e tudo pode ficar bem; “o fraco tem de esperar que cresça, que frutifique, que morra. É planta que vive e cresce através das eras”. Também foi dito que “forjar correntes terrenas é a ocupação dos indiferentes, o terrível dever de soltá-las por meio das tristezas do coração também é sua ocupação” e, de fato, “ambos são sacrifícios tolos”.[5] Ou isso acontece, ou, — a natureza moral finalmente se torna completamente amortecida, toda a força e o poder vital que foram retirados dela vão fortalecer o Egoísmo, que se torna, de agora em diante, um centro do mal, da destruição; um inimigo do eterno.

Parece que a existência individual implica uma certa quantidade de força, que pode vitalizar as faculdades da natureza superior ou as do egoísmo, ou ambas, em parte. Parece também que o egoísmo é um grupo de centros, por assim dizer, de onde a força energética do indivíduo pode operar: por exemplo, quando essa força opera de um centro egóico, surge a sensualidade; de outro, o ódio; de outro, a ambição má, e assim por diante. Quando a força energética é elevada à natureza superior, pode agir de vários centros; de um, como caridade; de outro, como santidade, e assim por diante. Quando a força energética é elevada à natureza superior, ela pode agir de vários centros; de um, como caridade; de ​​outro, como santidade, e assim por diante. Portanto, “qualquer boa qualidade pode se tornar qualquer outra boa qualidade” — se as condições forem favoráveis. Parece também que a Vontade pode degradar a força energética da alma para o egoísmo; ou, inversamente, pode elevá-la do egoísmo para a alma; de modo que, pelo poder alquímico da vontade, por assim dizer, o metal mais baixo se converte e, subindo ao topo do alambique, se torna ouro puro.

 

Além da natureza superior e inferior que consideramos, também reside no ser completo a consciência ou senso de existência e a vontade. Quando todas as porções da força energética — ou as faíscas sáttvicas,[6] como são chamadas em outros lugares — se elevam à natureza superior, o indivíduo torna-se um com o Eterno, uma parte do Espírito Unificado da Vida, e a existência individual cessa, de certo modo.

Quando se pergunta “O ego deve cessar ou continuar?”, a natureza moral responde decisivamente “Deve cessar”. “Se a verdade dessa ordem for reconhecida, surge imediatamente uma terrível luta; o “ego” oposto ergue-se com dez vezes mais força e violência; repetidamente ele lança dúvidas sobre a verdade da natureza moral; levanta obstáculos, tentações e impedimentos; todos os prazeres que ele desfrutou devem ser varridos para sempre; todo o ímpeto e poder que o egoísmo ganhou, por meio de longa indulgência contínua e crescimento desimpedido, são trazidos para suportar de uma vez a luta; toda a natureza é dilacerada pelo conflito, a vontade é testada ao máximo; mas sob todo esse tumulto e conflito está a consciência garantida da vitória final; sente-se que mais cedo ou mais tarde o “eu” deve ser destruído, que é construído para o tempo e não para a eternidade, que seus dias estão contados.

Durante a luta, ocorrem intervalos de paz, que crescem maiores e mais longos à medida que o fim se aproxima até a vitória final ser conquistada, essa paz se torna habitual. Mas, à medida que o conflito avança, a vontade finalmente ganha força para dizer, de uma vez por todas: “Daqui em diante, para sempre, não servirei mais ao ‘ego’”. E, imediatamente, a primeira luta termina. A dominação do “ego” é destruída para sempre.

Em resposta ao comando “Procure no coração a origem do mal e elimine-o”, a alma pode dizer: “Isso também fiz”. “Tal é a calma que virá ao espírito perturbado”, uma paz profunda e pura. A alma reconhece que o “ego” tem sido a causa da existência individual; quando o ele é removido, a alma tende a harmonizar-se com a grande harmonia, a tornar-se uma com o Eterno; mas todas as tendências malignas ao egoísmo e ao pecado devem ser gradualmente superadas, pois, embora sua causa e fonte tenham sido destruídas, elas ainda mantêm certo impulso.

Ainda não se pode dizer que a alma está perfeitamente unificada com o Espírito Unificado da Vida. Muito ainda resta a ser feito, mas muito já foi realizado, pois, durante a luta, a força energética foi dissociada dos centros do “ego” e elevou-se para fortalecer e vivificar a alma, que se torna forte, plenamente desperta e em harmonia com o eterno; a flor da alma está se abrindo, o primeiro passo no Caminho foi dado.

No Idílio do Lótus Branco, a mesma autora narra a mesma história de outra forma. A história do Novo Testamento é a mesma, assim como o esquema da teologia cristã, para aqueles que têm olhos para vê-lo; pois essa história é “a tragédia da alma, e foi contada em todas as épocas e entre todos os povos”.

“Entra no Caminho! Lá brotam as fontes curativas

Que saciam toda sede! Lá florescem as flores imortais

Recobrindo o caminho com alegria! Lá chegam

As horas mais rápidas e doces.”[7]

 

Charles Johnston

Dublin, Irlanda.

Artigo publicado na revista The Path em fevereiro de 1887.

 

 

 

[1] Charles Johnston (1867-1931) foi um escritor, tradutor e teósofo irlandês-americano, conhecido por suas traduções de textos clássicos do sânscrito e por seus trabalhos relacionados à filosofia oriental e à teosofia.

[2] Citação do livro The idyll of the white lótus (Idílio do Lótus Branco), de Mabel Collins.

[3] P. Sreenivas Row, membro da Sociedade Teosófica de Madras (atual Chennai) na década de 1880, escreveu uma série de anotações sobre o livro Luz sobre o Caminho, de Mabel Collins, publicadas em 1885 na revista The Theosophist.

[4] A obra Luz sobre o Caminho, de Mabel Collins, com tradução de Fernando Pessoa, foi publicada pela Ajna Editora em 2024.

[5] Citação do artigo “Teachings of the Master” (Ensinamentos do Mestre), assinado sob o pseudônimo Dois Chelas e publicado na revista The Path em novembro de 1886.

[6] Sáttvicas são características, qualidades ou pessoas associadas a sattva, um dos três gunas (tendências ou qualidades fundamentais) descritos na filosofia hindu, especialmente no Sankhya e no Bhagavad Gita.

[7] Citação do livro Light of Asia (Luz da Ásia), de Edwin Arnold, publicado em 1879.

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