A voz do silêncio por Jamil Salloum Jr.

Entre aqueles que contribuíram para o avanço da humanidade rumo a uma compreensão mais elevada dos mistérios da vida e do universo, para além da abordagem objetiva da ciência e dos dogmas das religiões, encontra-se Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891), mística ucraniana que despontou no final do século XIX e é considerada por muitos pesquisadores como um dos maiores pilares do esoterismo ocidental em séculos.

Blavatsky dividiu época e opiniões, deixando um impacto profundo na consciência dos que a conheceram pessoalmente ou através de suas obras. Maga, erudita, bruxa, charlatã, iluminada… não faltaram epítetos com os quais foi cravejada – e alvejada – pelo público, mantendo-se, contudo, um mistério profundo para a maioria. Os raros que tiveram permissão para levantar o véu e a viram em sua verdadeira natureza são unânimes em confirmá-la como uma mensageira da Fraternidade de Mestres Secretos que orientam a evolução espiritual da Terra, e que em intervalos precisos envia emissários para promover um novo impulso à humanidade.

Numa época em que a ciência se consolidava no paradigma newtoniano-cartesiano e se absolutizava numa abordagem materialista, e quando as religiões orientais eram vistas no Ocidente como oriundas de uma época de superstição antes da “luz salvadora do cristianismo”, Blavatsky apareceu sozinha no tumulto do mundo, armada de uma sabedoria diamantina e vontade inquebrantável. Dona de conhecimentos desconcertantes e poderes psíquicos assombrosos, ela rapidamente impôs sua personalidade e formatou uma nova abordagem para os dilemas científicos e religiosos: o ocultismo, corrente milenar de conhecimentos especiais que vem guiando a humanidade veladamente através das épocas.

Blavatsky optou por chamar a sua nova apresentação do ocultismo de teosofia, termo consagrado pelos filósofos alexandrinos, que significa “Sabedoria Divina”. Trata-se do substrato de todas as religiões tradicionais, unificadas para além de seus dogmas e superstições no âmago da Verdade atemporal. Em seu livro A chave para a teosofia, Blavatsky disse que “(...) como o sol da verdade se eleva cada vez mais no horizonte da percepção do homem, e cada raio de cor se desvanece gradualmente até que seja reabsorvido, a humanidade não será mais atormentada com polarizações artificiais, mas poderá gozar da pura e branca luz da verdade eterna. E esta será a teosofia”.

O impacto daquela mulher insólita sobre o mundo ocidental, e mesmo sobre vários países orientais, foi imenso. Ela chegou na encruzilhada de uma guerra acirrada, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre três grandes correntes: 1) a ciência positivista, para a qual só o que fosse objetivo merecia ser considerado; 2) o cristianismo, que se opunha a outros credos e se colocava como a única religião sobre a Terra; e 3) o espiritismo, que demonstrava fenômenos espantosos atribuídos aos mortos, os quais agiriam por meio dos vivos. No meio desse combate, ficava o povo em geral sem saber quem seguir ou em quem acreditar, ora voltando-se para uma corrente, ora para outra.

Com a criação da Sociedade Teosófica em 1875, nos Estados Unidos, por Blavatsky e seus dois cofundadores americanos, Henry Steel Olcott e William Quan Judge, as ciências ocultas passaram a gozar de uma difusão vigorosa, principalmente através das publicações às quais Blavatsky consagrara sua vida. Por meio de livros que rapidamente se tornaram best-sellers e abalaram as opiniões em voga, gerando ao mesmo tempo assombro, encantamento e repúdio, Blavatsky desferiu um forte golpe nos preconceitos científicos, religiosos e mesmo culturais de uma época em ebulição.

Aquela estranha mulher, de olhar intensamente penetrante, parlamentava em pé de igualdade com eruditos e cientistas, dissolvendo suas proposições diante de uma sabedoria antiga que já apontava que a matéria não passava de energia condensada, e isso décadas antes da mecânica quântica ser formalmente elaborada. Ela também desafiava os clérigos nas torres de seus dogmas, mostrando-lhes que abaixo de cada dogma havia um fio condutor, que permitia ligá-lo à mesma verdade apregoada em outras religiões, indicando-lhes a origem comum de todas as crenças, e isso antes do estudo de religiões comparadas se tornar uma disciplina reconhecida. Finalmente, Blavatsky explicou a causa da fenomenologia espírita de acordo com as ciências ocultas, que repousava nos poderes desconhecidos do próprio homem e não na ação dos mortos, os quais até podiam ser contatados, mas não da forma que se supunha.

Para consubstanciar seus argumentos, Blavatsky citava nomes, datas, civilizações, obras e autores (antigos e modernos, conhecidos ou esquecidos), numa demonstração de erudição que parecia impossível para uma pessoa só. Mais do que isso, demonstrava o que afirmava, podendo reproduzir praticamente todos os fenômenos espíritas então em voga: materializações, desmaterializações, telepatia, clarividência, telecinesia, entre outros, apenas pelo poder de sua vontade.

Certamente, tudo isso não ficaria impune.

Blavatsky não escapou à sina de todo visionário, pois como ela própria afirmou: “a coroa do inovador é uma coroa de espinhos”. E quantos foram os espinhos! Ela despertou primeiro o ódio dos religiosos, que a viam como uma bruxa perigosa a abalar os ditames da verdadeira fé. Consta que clérigos chegaram a lhe oferecer dinheiro para que parasse de publicar suas obras. Como a tática não funcionou, sobrou a difamação. Junto com os clérigos vieram os cientistas, desafiados em suas cátedras, e com eles até os pesquisadores do paranormal. A famosa Sociedade para Pesquisas Psíquicas da Inglaterra concluiu em 1886, por meio do Relatório Hodgson, que Blavatsky não passava de uma charlatã e falsificadora. Foram precisos cem anos para que a mesma Sociedade reconhecesse publicamente, em 1986, que o Relatório Hodgson fora tendencioso, inocentando Blavatsky. Finalmente, tendo explicado que os fenômenos espiritistas sem a filosofia do ocultismo não eram o que pareciam ser, podendo ser até perigosos, Blavatsky atraiu a ira dos espíritas de então, que não lhe pouparam libelos e acusações de toda ordem.

Apesar de tudo, a Sociedade Teosófica se robusteceu e atingiu vários países, agremiando associados de renome, como o cientista William Crookes, o inventor Thomas Edison e o astrônomo Camille Flammarion, além de incontáveis buscadores sinceros dos enigmas da vida. Segundo a pesquisadora alemã Katinka Hesselink, Helena Blavatsky influenciou em vida e postumamente quase cem grandes nomes da ciência, arte, filosofia e esoterismo. Entres eles, além dos três supracitados, constam os poetas e dramaturgos William Butler Yeats e Maurice Maeterlinck; os escritores Lewis Carroll, Lyman Frank Baum, Conan Doyle, T. S. Eliot e Khalil Gibran; os psicólogos William James e Roberto Assagioli; os pintores Piet Mondrian, Wassily Kandinsky, Paul Gauguin e Nicholas Roerich; os músicos Cyiril Scott, Gustav Mahler, Jean Sibelius e Alexander Scriabin; políticos como Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru; e a educadora Maria Montessori.

Finalmente, segundo o teosofista Iverson L. Harris, em entrevista no ano de 1974 ao periódico norte-americano The Journal of San Diego History, Albert Einstein tinha sempre uma cópia de um dos livros de Blavatsky sobre sua mesa de trabalho, fato que teria sido confirmado por uma sobrinha do cientista em conversa com a teosofista Eunice Layton.

E foi mesmo pela sua obra que Blavatsky ficou eternizada. Para expor um pouco da sabedoria da qual era transmissora, Blavatsky – auxiliada por seus Mestres – escreveu livros que desde então entraram para o rol das obras consagradas do ocultismo e do esoterismo, sendo estudadas por ávidos buscadores no mundo todo, mesmo mais de cem anos após sua publicação. De acordo com muitos, tais obras ainda se constituem em livros de vanguarda.

Entre essas obras consta o livro que você tem em mãos, amigo leitor. Trata-se de uma das mais comemoradas obras de Helena Blavatsky, sendo a última escrita por ela. A voz do silêncio tem, contudo, um diferencial – nesse caso, Blavatsky não foi mais do que uma tradutora dos pergaminhos secretos dos quais este livro nasceu. Trata-se, então, de uma obra realmente especial, ainda mais por ser um guia oculto destinado aos iniciados que almejam a conquista da Sabedoria. A voz do silêncio tem sido considerado não só o livro mais belo, mas um dos mais esotéricos entre todos os escritos de Helena Blavatsky. Eruditos no mundo todo, entre eles o atual XIV Dalai Lama, elogiaram a beleza e a importância da obra, que traz, pela primeira vez na história, um pouco da sabedoria secreta do Oriente ao público ocidental.

Como surgiu este extraordinário livro?

Já no final da vida e muito debilitada, Helena Blavatsky viajou até a cidade francesa de Fontainebleau para repousar. Suas duas principais obras, Ísis sem véu e A doutrina secreta – além de outros escritos de menor envergadura – já tinham sido publicadas e eram sucesso editorial, consagrando-a como autora e ocultista. Foi durante esse período de repouso que Blavatsky recebeu ordens de seu mestre, conhecido como Morya-El, para traduzir alguns fragmentos de uma das obras secretas que ela havia lido enquanto estava em treinamento no Tibete. Ela permanecera no “país das neves” por três anos, a partir de 1868, numa localidade próxima a Shigatse, período em que seus poderes psíquicos foram grandemente aprimorados, sob a supervisão direta de seu mestre e de outro mestre conhecido como Kut-Hu-Mi, ou Koot Hoomi.

Conta Blavatsky que parte de seu treinamento no Tibete consistia em memorizar alguns fragmentos de um livro secreto e antiquíssimo, conhecido como O livro dos preceitos áureos, a mesma fonte de onde foram retiradas as famosas Estâncias de Dzyan, origem de seu outro livro A doutrina secreta. Esses manuscritos estavam escritos tanto no tibetano como na linguagem internacional dos iniciados, chamada senzar ou zend-zar, na qual Blavatsky se tornara proficiente.

Foi então dessa misteriosa fonte que nasceu A voz do silêncio. Trata-se de um manual para uso diário dos discípulos que já estão sob a supervisão de um mestre e se preparando para alcançar os altos estágios de desenvolvimento místico. Os fragmentos permitidos a Blavatsky traduzir foram organizados em número de três e revelam estágios progressivos de ascensão espiritual, delineando as armadilhas que o iniciado deve evitar e as “câmaras” místicas que deve atravessar antes que seu Adeptado, ou Iluminação, esteja confirmado.

Neste livro, vemos o mais belo ideal do budismo mahayana, o ideal do bodhisatva, explicado em todo o seu esplendor esotérico – forjar a iluminação da consciência, a conquista da mestria espiritual, não para o benefício próprio, mas para a elevação da humanidade. Àquele que alcançou a Luz, é recomendado que se volte para a região de sombras onde se debate a maioria dos seus irmãos humanos, presos na floresta dos erros, e compassivamente os ajude. Bodhisatvas são, pois, todos os mestres que estiveram em missão na Terra, como Zoroastro, Krishna, Lao-Tzu, Buda, Jesus, entre outros. É, na verdade, todo e qualquer ser humano que, conquistando a Sabedoria e esgotando a roda de reencarnações, consente em voltar voluntariamente à Terra em missão, para orientar.

A voz do silêncio foi publicada em 1889 e, rapidamente, se consagrou como a mais bela e mais inspirada obra de Helena Blavatsky, embora esta tenha sido, como vimos, apenas a tradutora. Cada sentença está repleta de poder oculto, cada frase carrega um significado esotérico, cujo alcance caberá ao leitor descobrir. Trata-se de um hino de valor imensurável e, ao mesmo tempo, de uma poesia de beleza transcendental, que metodicamente ruma o leitor encantado para as regiões do Eu Superior, região onde, somente nela e em nenhum outro lugar, se poderá conquistar a verdadeira Paz e a verdadeira Sabedoria.

O livro tem impressionado leitores em todo o mundo desde seu lançamento. Um deles foi o consagrado poeta Fernando Pessoa (1888-1935), que fez questão de traduzir a obra para o seu idioma. Em carta dirigida a seu amigo, o também poeta Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa fala da “crise” que a Teosofia abriu em sua forma de pensar, e na revolução interior daí desencadeada. Podemos imaginar a dimensão do impacto que esta obra ocasionou na alma do poeta místico português.

É, portanto, de se saudar que uma nova edição deste livro “sem idade” – pois remete à Eternidade, ao “Grande Além de Dentro” – esteja vindo à luz pela Ajna Editora, que disponibiliza a tradução de Fernando Pessoa de A voz do silêncio de forma esmerada e atualizada.

Como o misterioso idioma senzar é, segundo Blavatsky, a fonte do sânscrito, a tradução está repleta de termos nessa língua, para os quais Blavatsky acrescenta explicações em oportunas notas de rodapé, facilitando assim a compreensão do leitor. Portanto, recomendo uma leitura vagarosa, reportando-se sempre que necessário às notas de Blavatsky. A propósito, este não é um livro para ser lido, tampouco estudado, no sentido convencional.

Trata-se de uma obra que requer uma “comunhão” com o leitor, para que a força de cada exortação, de cada sentença, cale fundo na alma e promova os efeitos desejados. Portanto, amigo leitor, escolha um lugar calmo para apreciar este livro. Medite sobre cada frase e anote suas reflexões em algum lugar. Não se apresse, pois você tem um tesouro imemorial em mãos. Use-o como inspiração.

1 comentário

  • Sobre a personalidade feminina, talvez a mais importante e significativa para a Humanidade nos últimos séculos, seria mesmo necessário um pronunciamento por alguém com um respeitável e reconhecido portfólio de estudos sobre a Senda Esotérica, Universal digamos assim, em suas múltiplas manifestações. Grato, FRC Jamil. O mundo passa da hora de resgatar a contribuição indelével dessa Grande Rosacruz de seu tempo.

    Antonio N C Bedran em

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